Programa de militarização escolar exclui estudantes mais pobres visando aumentar índices de desempenho
Pesquisa mostra que o modelo cívico-militar de educação do Paraná seleciona escolas com melhor rendimento e tenta esconder desigualdades com notas de desempenho
Uma pesquisa desenvolvida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP identificou que o Programa de Colégios Cívico-Militares do Paraná (CCMPR) “preparou o terreno” em algumas unidades escolares daquele estado para aumentar os números do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). O objetivo do CCMPR, de acordo com a geógrafa Rafaela Miyake, foi “elitizar” a rede de ensino para argumentar que o modelo cívico-militar apresenta bons resultados.

Contudo, na pesquisa intitulada Geografia da expansão da militarização nas escolas da rede pública a partir do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares, Rafaela constata que não há nenhum estudo científico que comprove a ligação direta entre a militarização e o aumento do Ideb. Para a pesquisadora, “o modelo cívico-militar deveria ser considerado inconstitucional”. A dissertação de mestrado, orientada pelo professor Eduardo Girotto do departamento de Geografia, é uma continuação do trabalho da geógrafa desenvolvido no seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), na FFLCH.
O CCMPR é uma iniciativa do estado governado por Carlos Roberto Massa Júnior, implantada com base no Decreto Federal nº 10.004, que instituiu o Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim), em setembro de 2019. O documento previa o “emprego de oficiais e praças das polícias militares e dos corpos de bombeiros militares para atuarem nas áreas de gestão educacional, didático-pedagógica e administrativa”, além da aplicação de recursos para a implementação do programa.
De acordo com a pesquisa, o número de vagas para Educação de Jovens e Adultos (EJA) disponíveis nas escolas que aderiram ao Pecim caiu de 8.077 para 731 entre 2018 e 2023. Já com relação às escolas do CCMPR, houve queda no número de vagas no período noturno neste mesmo intervalo: de 24,8 mil para 2,9 mil, enquanto 14 mil vagas surgiram no período diurno. “O perfil é de uma escola com poucos alunos, sem período noturno, sem EJA e com um perfil socioeconômico que vai aumentando ao longo do tempo”, afirma Rafaela.
“Quando você fecha o noturno e o EJA, você aumenta o Ideb. Porque são esses alunos que trabalham, reprovam, não vão para a escola etc. Então, realmente, quando você fecha isso, você sobe o Ideb”, explica. Ao todo, até 2024, 312 escolas foram militarizadas no estado, segundo o governo do Paraná.
O estudo não analisa escolas militares. Ele abrange apenas aquelas que eram civis e que, em algum momento, tiveram corporações militares inseridas no interior de suas unidades a partir de políticas educacionais. Por isso o nome cívico-militar.
Quanto mais desigual, melhor
Tanto a antiga proposta de militarização nacional quanto a estadual têm como princípios a preferência às escolas públicas em vulnerabilidade social e a igualdade de oportunidades. No Paraná, também é proibido realizar processos seletivos para a entrada de estudantes. Rafaela defende que o modo como essas escolas operam fere os princípios da Constituição e dos próprios programas, já que elas estão tomando medidas que aumentam o perfil socioeconômico dos matriculados e, portanto, excluem classes mais baixas.
Para Rafaela, além da revogação do programa nacional em 2023, o decreto deveria ter sido interpretado como inconstitucional e proibido de ser aplicado no País. “A partir do momento que não proibiu, Lula abriu espaço para os estados e municípios que já tinham escolas cívico-militares, principalmente do programa nacional, incorporarem essas escolas em programas próprios. Como aconteceu no Paraná, por exemplo.”
O TCC da geógrafa retoma um estudo do Instituto Mauro Borges de Estatística e Estudos Socioeconômicos (IMB), que aponta que o alto rendimento das escolas militarizadas não está, necessariamente, vinculado à gestão militar. O instituto menciona que são os investimentos que permitem a “qualidade de formação do corpo docente; ótimas condições estruturais; recursos financeiros para além do disponibilizado pelo Estado; alto perfil socioeconômico dos discentes”, escreve Rafaela.
A pesquisadora destaca que a infraestrutura das escolas do programa paranaense está “dentro de um campo de exceção” em relação às outras instituições da rede pública. O estudo de mestrado mostra que há maior disponibilidade de equipamentos nos colégios do CCMPR, como quadras cobertas, laboratórios de informática e ciências e bibliotecas. “Esses equipamentos fazem parte do Custo Aluno-Qualidade Inicial e são fundamentais para a dinâmica de ensino e aprendizagem na escola”, completa.
Dois pesos, uma medida
Rafaela diz que os programas cívico-militares são consequência do avanço do neoliberalismo na América Latina, que vem desde os anos 1990. Essa ideologia propõe inserir a dinâmica corporativa das empresas privadas nas políticas e instituições públicas, com o objetivo de gerar lucro. No caso das escolas, a ideia é inserir uma gestão de excelência que gere altos desempenhos.
A estudiosa afirma que, ao invés de melhorar as escolas, esse modelo de administração cria “ilhas de excelência” que maquiam as desigualdades sociais. Essas ilhas agrupam classes mais altas e com notas maiores e excluem, por exemplo, estudantes que trabalham.
Por isso, ela critica o uso isolado do Ideb como critério de comparação e afirma que esse modo de medir desempenhos é perverso. “Quando eu pego um dado isoladamente e uso ele para medir qualidade em um território tão desigual quanto é o nosso, é como naquele meme: chame um macaco, um peixe e um elefante e fale: “Escale uma árvore”. Não tem como [comparar], entendeu?”, explica a pesquisadora.
Fonte: https://jornal.usp.br/
*Com texto de Rafael Dourador, do Serviço de Comunicação Social da FFLCH, e edição de Isabela Nahas.
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